terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A "bomba"

Vejamos: não veio propriamente mal nenhum ao mundo com a manifestação de ontem à noite, em Vila Nova de Gaia, durante a participação do ministro Miguel Relvas no Clube dos Pensadores, para o qual foi convidado a debater o «momento político» com uma plateia de cidadãos, mais ou menos anónimos, e aberta a qualquer um, não obstante a instalação do evento num espaço privado, como é uma sala de reuniões ou conferências de um hotel. E não veio mal nenhum ao mundo porque, efectivamente, quem protestou, disse o que tinha a dizer ao ministro e, por outro lado, o ministro teve a oportunidade de se defender, arranhando, primeiro, as cordas da sua própria garganta com uma incapacidade inata para cantar, depois, respondendo a questões rotuladas como «difíceis» e, ainda, afirmando à Comunicação Social que o desempenho das funções que lhe estão atribuídas obrigam a um estado de preparação para ocorrências do género.

Mesmo assim, Joaquim Jorge, fundador do Clube dos Pensadores e moderador do debate, reagiu em fúria aos manifestantes quando o protesto passou de mensagem cantada - Grândola Vila Morena - a palavras mais duras e frequentes nos tempos que correm, dirigidas a Relvas e, na pessoa do ministro, aos governantes deste país. «Gatuno» foi a expressão que fez rebentar a "bomba", os nervos contidos em Joaquim Jorge e que, se calhar, Joaquim Jorge vinha a acumular há muitos dias, talvez desde a hora em que Relvas aceitou o convite que lhe fora endereçado.

Relvas, muito naturalmente, disse que estava à espera do que aconteceu - e estava, a julgar até pela presença policial no hotel e nas imediações deste (nada de estranho, a polícia faz a vigilância dos governantes em qualquer circunstância) -, mas Joaquim Jorge também desconfiava ao que ia e apresentou-se ao «trabalho» consciente da volatilidade do debate que promoveu: no domingo passado, tanto na sua página pessoal no Facebook, como no blog do Clube dos Pensadores, foi publicado um texto elucidativo disso mesmo.

«Estamos sempre a criticar ( eu fui um deles) e não gostei quando o Governo com convites previamente seleccionados discutiu à porta fechada e sem presença de jornalistas a Reforma do Estado. Mas como criticamos devemos também aplaudir. Aqui estamos de forma livre, sem condições para que o Ministro explique o que o governo fez e vai fazer. Deste modo merece o meu aplauso. Não aceito que se aproveitem deste formato único do Clube em que cada um pode perguntar o que muito bem entender sem censura ou algo combinado previamente. Liberdade implica responsabilidade . Espero que haja elevação sem achincalhamento sem serem indelicados . Com isto não quero dizer que não haja contraditório , pontos de vista diferentes e perguntas difíceis. O unanimismo não faz parte do ADN do Clube, antes pelo contrário fomenta-se o debate de ideias. Mas fomenta-se também a educação e o respeito pelos outros, mesmo não estando de acordo», lê-se no referido texto, em jeito de projecção do debate com o ministro.

Joaquim Jorge é um cidadão como qualquer outro, abrigado pelos mesmos direitos conferidos a todos e motivado pelas suas convicções, que desconheço, mas que considero legítimas porque, na verdade, não somos, nem podemos, nem devemos, ser todos iguais, e chegados a este pressuposto, atingimos pilares da democracia, da bandeira hasteada por Joaquim Jorge quando tentou, inflamado, calar quem, motivado pelas suas convicções não menos legítimas, protestava contra Relvas e o governo.

No rebentar da fúria, Joaquim Jorge disse muitas coisas. Disse, por exemplo, que um episódio como aquele afastaria ministros de uma presença noutro evento do Clube dos Pensadores; pediu às câmaras de TV que virassem as costas ao mal (manifestantes) e focassem o bem (Joaquim Jorge); trovejou «cala-te» a quem foi demorando um pouco mais na sala a protestar com Relvas; fez uma poderosa demonstração de quem estava ofendido não propriamente com uma espécie de ataque a valores democráticos, mas sim à imagem que tudo aquilo iria dar ao seu Clube de Pensadores, com tantos jornalistas presentes e, obviamente, prontos a reportar o sucedido, como veio a acontecer.

Politicamente, não sei, e nada me interessa, onde se situam as convicções de Joaquim Jorge. A fúria com que reagiu aos manifestantes até poderá ter sido, ou não, espoletada por ideais políticos, mas a superlativa razão, parece-me, residirá num egocentrismo gritante de alguém que, com certeza democraticamente, antes do debate, concluia assim o texto atrás mencionado. «Se o fizerem estão a atacar não o convidado mas o Joaquim Jorge , o Clube e todo o trabalho que tenho feito em prol da cidadania e da participação cívica ao longo deste quase 7 anos».

Se o Clube dos Pensadores voltará a promover outro debate com um ministro deste governo, é uma incerteza. Primeiro, porque não se sabe até onde vai chegar este governo, se até 2015, como Relvas afirmou, ou se mais perto; segundo, porque, realmente, os ministros podem não querer passar pelo mesmo que passou Relvas, independentemente de se encontrarem preparados para tal; terceiro, o Clube dos Pensadores, revendo o que se passou, pode não querer convidar mais ministros. E por aí fora, porque a especulação abre margem a muitas e eventuais razões...

De volta a factos concretos, mais do que a manifestação, a imagem de Joaquim Jorge em ira absoluta ao lado de um Relvas aparentemente mais sereno esclareceu-me por completo. O senhor JJ não gostou que fossem ao evento dele «fazer barulho» e ficou preocupado com o futuro do seu Clube de Pensadores, nada de estranho, mas algo que também me faz espécie, porque esta não foi a primeira vez que um debate do Clube de Pensadores esteve envolvido por acontecimentos capazes de merecerem uma veemente condenação de Joaquim Jorge. Quando, em Outubro de 2011, Jerónimo de Sousa (PCP) foi o convidado do CdP, o debate iniciou-se com pelo menos 20 minutos de atraso, consequência de uma ameaça de bomba dirigida ao hotel onde teve lugar o debate.

«Não liguei muito, achei uma piada de mau gosto, mas os donos do hotel ligaram para a polícia, que entretanto chegou e está a verificar o que se passa», disse, então, Joaquim Jorge à Agência Lusa (ver notícia reproduzida pelo Diário de Notícias em  http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=2064056&seccao=Norte), sem que eu conheça registo de uma crispação do senhor JJ como a que se assistiu ontem à noite em Vila Nova de Gaia. Dessa vez, e como a polícia confirmou, não havia bomba na unidade hoteleira. Ontem, havia a "bomba" Joaquim Jorge.

Compreendo que Joaquim Jorge tenha defendido a brasa das suas sardinhas, que se tenha preocupado com a imagem do seu Clube dos Pensadores e o trabalho que afirma realizar em «prol da cidadania e da participação cívica». Não gostou do que se passou e passou-se, libertando o inferno de nervos que o consumia. Mas se em vez de fazer birra tivesse reagido à situação democraticamente, talvez não sublinhasse a força do protesto dos manifestantes com os seus berros e amuos, deixando essa função para Relvas, que (também) o fez, sobretudo daquela forma tão desconcertante como flagelou a Grândola Vila Morena.

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