segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Vamos à Grândola!

Não sei com que idade aprendi a cantar a Grândola Vila Morena, canção que trago na ponta da língua desde pequenino. Aprendi-a como se fosse um hino nacional, e quando a ouço, recordo, inevitavelmente, o meu pai, meu excelente professor para a vida, morto há já uns anos largos numa cama de um hospital, clinicamente dado como incapaz de resistir a uma insuficiência cardíaca e respiratória, tal como foi descrito à família na certidão de óbito. A Grândola também é para mim uma máquina do tempo, onde encontro sempre o meu pai e faço com ele espantosas viagens a dias que, felizmente, não vivi, e a combates contra monstros enterrados para aguardarem nova oportunidade de ressurgirem plenamente devoradores, trazidos de volta por seguidores inteligentes, experientes na arte da manipulação das consciências e, regra geral, das nossas vidas.

Com o meu pai (e a minha extraordinária mãe) aprendi a questionar tudo, a procurar interpretar o porquê das coisas, mesmo daquelas que me parecem correctas, e aprendi, então, significados da Grândola Vila Morena, a canção por estes dias regressada às ribaltas mediáticas, por culpa do protesto, amplamente noticiado e ocorrido na passada sexta-feira no Parlamento. De repente, a canção recuperou um bocadinho da sua força, galgou as margens do evocativo para inundar o terreno do motivador, alarmando (mais) o pensamento público para o estado em que nos encontramos, em Portugal e no resto do mundo, porque a Grândola tem essa dimensão universal de ser tão autêntica aqui como em qualquer outra latitude do globo.

Faz-nos sempre bem ouvir a Grândola Vila Morena, até para lamentar a incapacidade de, ao longo de quase 40 anos, não termos sido capazes de a interpretar como deve ser, para não termos de recorrer a ela outra vez como senha ou sinal de luta. Mas a culpa também é nossa, dos da minha geração e das gerações que nos estão na periferia: na generalidade, andámos todos entusiasmados a projectar futuros, absorvidos pela ilusória autoridade de gerirmos o nosso próprio destino, conduzido, na realidade, pelos competidores do campeonato mundial do cifrão e seus governantes.

Durante anos, cantámos a Grândola pelo menos uma vez por ano, ao chegar Abril para nos contar como foi em 1974, em celebrações sentidas e, também, em evocações acentuadamente hipócritas, porque não vejo os valores de um povo que mais ordena instalados nas políticas da alternância dominadora das últimas quatro décadas. Longe disso.
 
E daqui faço a ponte para os motivos deste desabafo - como foi possível o povo da Grândola esquecer os significados da canção? Como foi possível o povo da Grândola deixar-se levar pela ilusão do querer e “ter”? Agora, berra-se até aos impropérios contra quem nos rouba, canta-se Grândola Vila Morena para acordar outra vez, e até neste pormenor somos o que somos: obrigados a ir ao passado buscar hinos de luta porque não os temos com as nossas assinaturas, as mesmas que, por exemplo, pusemos em contrato de seguro, porque não sabíamos como seria o dia de amanhã e convém um gajo prevenir-se.

Estamos muito mal neste país, e continuamos sem saber como será o dia de amanhã, provavelmente, pior do que o dia de hoje, não sei, há que esperar… A culpa dos governantes e dos capitalistas anda aí, arremessada diariamente para o ar nas manifestações, nos protestos, nos desabafos - eu também a transporto, eu também não andei estes anos todos plenamente acordado, eu não estou, nem quero estar, acima de ninguém, mas lamento, e muito, mesmo, que não tenhamos sido capazes de travar à nascença o que está a acontecer.

Temos, enquanto povo, a nossa parte de responsabilidade no estado a que chegámos, e somos, todos juntos, a melhor resposta, a salvação do poço da morte em que estamos metidos. Já que não temos as nossas Grândolas, sejamos capazes de interpretar, desta vez, os significados da Grândola que José Afonso nos pôs nas nossas vidas, e aplicá-los a sério, para os monstros voltarem a ser enterrados, mas, agora, mortos e bem mortos.

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